Paz de Cristo no Estádio da Luz
Agora os jogos são sempre à noite, mas continuo a ir para o estádio a meio da tarde. Reflexos do passado. E a meio da tarde, às portas da Luz, um jogo grande é aquilo que sempre foi: um pequeno laboratório de Portugal. Perco a conta aos diferentes sotaques. Três só do Alentejo: o do Alentejo aquático, o meu, o da malta do Alto, estilo Évora, essa cidade sub-beirã, e aquela coisa que se fala em Niza. Se os ouvidos estão entretidos com sotaques, os olhos reparam no maior mistério da bola desde os tempos da almofadinha-pra-bola: as mulheres que se produzem para ir ver um jogo de futebol. Estão ali, num domingo à tarde, entre cerveja, coirato e asneiredo, mas estão vestidas e calçadas como se fossem para a discoteca de sábado à noite. Eu não me importo com o espectáculo, mas fico fascinado com o desarranjo teatral entre o cenário e as personagens. É como se personagens de uma tragédia tivessem caído numa comédia.
Portas abertas, subo até ao lugar, até ao parceiro de bola, o meu barbeiro, até à discussão sobre as tácticas da equipa, os gestos a fazer à claque rival, a consistência das queijadinhas de Sintra (o lanche eterno do Estádio da Luz). Enquanto falamos, chovem outras dissonâncias teatrais, como aquela senhora que sobe todas as escadinhas do terceiro anel com saltos de 10 cm. Ali está um titã, um portento de força, uma carregadora de piano que daria muito jeito ao nosso meio-campo defensivo. E, de repente, sem saltos altos, a harmonia chega: uma família inteira, dez ao todo, avó incluída, senta-se à minha beira. Imediatamente ao meu lado, o caçula da família, não mais do que dez anos. O que coloca um dilema: aqueles ouvidos aguentam palavras cabeludas? Posso comentar a vida profissional da mãe do árbitro ao lado de uma criança? O dilema não aguenta cinco minutos de jogo. Lamento, mas bola sem asneiredo é como missa sem reza. Do mal, o menos: o menino fica a saber palavras novas e, acima de tudo, novas combinações de palavras.
Ao intervalo, duas mudanças: Gaitán começa a jogar e a avó substitui o neto na cadeira ao meu lado. E, atenção, a senhora é mesmo uma avó, não é uma daquelas varinas encarnadas que fazem de mim um menino no campeonato do asneiredo. Portanto, contenho a verve de índio do terceiro anel. Não faz mal, porque Gaitán resolve sossegar-me com aquele golo. O Estádio implode e segue-se uma espécie de Paz de Cristo futebolística. A meio da missa, como sabem, temos de dar beijinhos e apertos de mão às pessoas que nos rodeiam. Ali é igual: tocamos, abraçamos e até beijamos gente que nunca vimos na vida. O Estádio da Luz não é a Catedral por causa da monumentalidade. Não é a arquitectura que faz a fé. A Catedral é a Catedral por causa desta Paz de Cristo em chuteiras. Benfiquista que não abraça não é benfiquista. À direita, abracei o meu barbeiro e um angolano, por cima comunguei com o pernil de três jovens em leggings, e à esquerda abracei aquela avó com um prazo de validade de 45 minutos. E foi bom sentir aquele buço benfiquista. Obrigado, Nico.