Chalana - Queria Ser Pássaro
«Torpor de fim de tarde. A angústia de se saber que está na hora de ir para casa quando ainda se quer tentar a última finta, outro golo, naquela rua em que só há um candeeiro e mal dá para ver a bola. “Já são horas, Fernando. Olha que vem aí o feijão-verde.” Ele não ouve. Continua. Já não há mais ninguém. Só ele e a bola, cúmplices, a luz débil do candeeiro, um homem que, antes de entrar em casa, bate com as botas no tapete, assobia, um cão, o cheiro a lodo, o enxofre das fábricas, finta um adversário que não está lá, e depois outro, atira para uma baliza que são duas pedras desiguais no chão, e será sempre assim, mesmo anos mais tarde, naquele fim de tarde mediterrânico, em Marselha, uma maré de calor e saudade sobe do porto e vence as bancadas, silencia as vozes, apaga os adversários, está outra vez sozinho, com a bola, nas ruas do Lavradio, noutro crepúsculo que é sempre o mesmo, num estádio que é sempre uma estreita faixa de pó numa vila operária, sob os holofotes que iluminam tão pouco como aquele candeeiro mortiço da sua infância. Os adversários não estão lá. Ele, na verdade, também não está lá. Está sempre noutro lugar, mais à frente, mais longe.»
Texto publicado na revista 2 do jornal Público. Ler aqui.